Quantcast
Channel: Notas Musicais
Viewing all articles
Browse latest Browse all 4098

Chico já tangencia o infinito ao chegar aos 70 anos com a obra glorificada

$
0
0
 Parafraseando versos de Tempo e artista, música lançada por Chico Buarque no álbum Paratodos (BMG-Ariola, 1993), o tempo é a grande estrela na festa dos 70 anos que o cantor, compositor e escritor carioca completa hoje, 19 de junho de 2014. Rei, o tempo obrou a arte de Chico - em foto de Daryan Dornelles - e modelou o artista ao seu feitio. Desse molde, resultou um dos cancioneiros mais belos e fortes da história da música brasileira. Obra que, nascida oficialmente em 1964, permanece incólume em seus 50 anos de vida. Dos sambas e canções dos anos 1960, impregnados de certo lirismo e de uma verve carioca que evocava Noel Rosa (1910 - 1937), Chico logo migrou para as canções mais combativas, já com o status de ter se tornado, a partir de 1968, parceiro do soberano Antonio Carlos Jobim (1927 - 1994). Na década de 1970, sua música foi a flor que encarou os canhões reais e metafóricos da ditadura instaurada no Brasil desde 1964, tornando Chico um dos alvos preferenciais da censura que abafou, mas jamais calou, a MPB. Analisada com o benefício da perspectiva, a obra de Chico parece ter tido na resistência o motor de sua criação mais intensa. Como se fosse um ato político, essa obra também desafiou as leis e conceitos que delimitam territórios na criação musical pela natureza do sexo de cada compositor. Naquele tempo de guerra, Chico também foi a voz feminina que retratou grandezas e pormenores da alma da mulher em canções de natureza quase sempre dramática, vocacionadas para cantoras teatrais. Vestindo a pele do artista, o tempo também fez Chico experimentar um tempo de delicadeza e serenidade quando cessou a censura oficial. A partir de 1987, ano do álbum Francisco, sua discografia ficou mais espaçada. Músicas e discos de menor empatia popular embutiram requinte crescente na construção da obra. Em fina sintonia com seu renovado tempo, o artista buscou trilhar caminhos harmônicos menos previsíveis, burilando cada vez mais a arquitetura da palavra. Palavra nem sempre acompanhada de melodia. Entre um disco e outro, o romancista tomou a cena, escrevendo livros analisados com  reverência e boa vontade entre os críticos da área por ser o autor quem é. Com seu lápis impreciso, o tempo também pôs rugas ao redor da boca e de todo rosto do artista, mas não lhe arrebatou a garganta - e aí é preciso contrariar os versos da música de 1993. Quando o velho cantor sobe ao palco, o tempo canta. Mas a voz, mesmo com viço irregular, sinaliza que o artista depurou a arte de interpretar a própria obra. Obra que, como o tempo, alcança a glória na era dos 70 anos do autor. Mesmo sob ataques disparados pelo céu de estrelas efêmeras das redes sociais, Chico Buarque de Hollanda já tangencia o infinito alcançado - com a benção do tempo - somente pelos raros gênios da Arte.


Tempo e artista
(Chico Buarque, 1993)


Imagino o artista num anfiteatro
Onde o tempo é a grande estrela
Vejo o tempo obrar a sua arte
Tendo o mesmo artista como tela

Modelando o artista ao seu feitio 
O tempo, com seu lápis impreciso 
Põe-lhe rugas ao redor da boca 
Como contrapesos de um sorriso 

Já vestindo a pele do artista 
O tempo arrebata-lhe a garganta 
O velho cantor subindo ao palco 
Apenas abre a voz, e o tempo canta 

Dança o tempo sem cessar, montando 
O dorso do exausto bailarino 
Trêmulo, o ator recita um drama 
Que ainda está por ser escrito 

No anfiteatro, sob o céu de estrelas 
Um concerto eu imagino 
Onde, num relance, o tempo alcance a glória 
E o artista, o infinito

Viewing all articles
Browse latest Browse all 4098

Trending Articles