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Romulo Fróes se eleva ao descer ao chão nobre de Cavaquinho sem o chão

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Resenha de álbum
Título: Rei vadio - As canções de Nelson Cavaquinho
Artista: Romulo Fróes
Gravadora: Selo Sesc
Cotação: * * * * *

Quebrando o silêncio fúnebre de Luto (Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Sebastião Nunes, 1960), a cuíca de Wellington Moreira Pimpa chora. O choro é acompanhado pelas lágrimas sentidas que também parecem brotar do toque da guitarra de Guilherme Held. A dor do samba de Nelson Cavaquinho (29 de outubro de 1911 - 18 de fevereiro de 1986) - o nobre bamba carioca que saiu de cena há exatos 30 anos - é respeitada (com paradoxal desrespeito) por Romulo Fróes na sétima das 14 faixas do primeiro disco de intérprete do compositor paulistano, Rei vadio - As canções de Nelson Cavaquinho, lançado neste mês de fevereiro de 2016 pelo Selo Sesc. Após seis álbuns autorais em discografia solo iniciada em 2004, Romulo Fróes se eleva ao descer ao inferno astral do compositor carioca em universo poético povoado pela sombra da morte que espreita o nobre vagabundo enquanto ele, o majestoso Cavaquinho, vive a sofrer dores, humilhações e abandonos. Romulo desce ao chão existencial de Cavaquinho, sem harmonia e o chão da cozinha do samba tradicional, em disco de alto nível artístico pela coragem de abordar obra já entronizada na galeria imortal do samba sem a reverência já devidamente prestada por grandes cantoras como Beth Carvalho e Leny Andrade, ambas com luminosos discos dedicados à obra de Cavaquinho. Rei vadioé disco escuro que poetiza a vida pela luz negra de destino cruel. Ao recontar a História de um valente (Nelson Cavaquinho e José Ribeiro, 1966), Romulo até arma a cadência bonita do samba, mas logo a desarma na polifonia dissonante do arranjo que inclui o bass synth de Marcelo Cabral, para restaurá-la em seguida. No chão, sem o chão. Rei vadio vagueia pelas trevas em passos falsos, mesmo quando evolui harmonioso no compasso do samba-choro de Caminhando (Nelson Cavaquinho e Nourival Bahia, 1963), tema originalmente instrumental que ganhou versos oníricos de Nuno Ramos e a voz de Ná Ozzetti. Na letra, Nuno perfila as contradições e a máscara do nobre vagabundo que invadia as ruas e os bares com o cavaquinho, o copo de bebida e o sentimento de abandono que provocava o choro solitário confessado em Rei vagabundo (Nelson Cavaquinho, José Ribeiro e Noel Silva, 1968), samba introduzido por ruídos até que o toque do violão do próprio Romulo clareia a atmosfera suja do ambiente, traduzida por arranjo intencionalmente vazio. Barulhos feios, aliás, são os primeiros sons ouvidos em Rei vadio na introdução de Pode sorrir (Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, 1973). O trombone de Allan Abbadia e a cuíca de Wellington Moreira Pimpa sinalizam já nesta primeira faixa o tom fúnebre que pauta o disco. O mesmo trombone de Abadia sopra a solidão espalhada em Cinzas (Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Renato Gaetani, 1955). Mesmo que os toques do violão e do cavaquinho de Rodrigo Campos tentem iluminar Não me olhes assim (Aceito teu adeus) (Nelson Cavaquinho, Luis Rocha e Amado Régis, 1967) na cadência do samba, Rei vadio acaba por apagar a luz em respeito ao perene luto existencial do nobre vagabundo. Em Notícia (Nelson Cavaquinho, Alcides Caminha e Nourival Bahia, 1955), fica claro que a guitarra - no caso, a de Guilherme Held - atravessa intencionalmente o samba. Essa guitarra se junta à de Kiko Dinucci para fazer brotar a mágoa que semeia Erva daninha (Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, 1976), samba que até cai em certo suingue, à certa altura, mas logo recai no chão sem chão que sustenta Rei vadio. Pote até aqui de mágoas, o canto rústico do compositor ora celebrado sem cores é evocado por Dona Inah, dama do samba paulistano, solista quase solitária de Eu e as flores (Nelson Cavaquinho e Jair do Cavaquinho, 1968), tema em que a voz de Romulo é ouvida somente após o quarto minuto da faixa, como fugaz sopro de vida. Indício de que a tristeza se impõe até sobre a folia, Vou partir (Nelson Cavaquinho e Jair do Cavaquinho, 1965) cai no samba quase tradicional com a cozinha de Wellington Moreira Pimpa e o coro da velha guarda da escola paulistana Nenê de Vila Matilde. Bem marcada pela bateria de Curumin, a humilhação afetiva de Mulher sem alma (Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, 1973) é reiterada pelos metais orquestrados por Thiago França, traduções dos tropeços do nobre vagabundo nos passos erráticos da feminina personagem-título. A propósito, tal como a obra de Lupicínio Rodrigues (1914 - 1974), o cancioneiro de Nelson Cavaquinho destila mágoas e culpas jogadas na conta da mulher amada. Contudo, no samba de Cavaquinho, há mais resignação do macho ferido, talvez pela consciência da finitude que se aproxima. A morte cai bem no chão do nobre vagabundo. Por isso, quando o disco vai chegando ao fim, o teatro fica cada vez mais sem cor. Revivida com a adesão da voz de Criolo, Luz negra (Nelson Cavaquinho e Amâncio Cardoso, 1961) tira todo o chão de Romulo em alucinado arranjo que caminha em passos cambaleantes. É nessa rota dissonante que é feito Juízo final (Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, 1973). A voz sempre bem colocada de Romulo é ouvida somente no segundo minuto do samba. Fez-se a treva. Mas eis que, após o (falso) fim apocalíptico, ouve-se o coro sujo de um bloco de rua, como a dizer que, sim, a luz há de chegar até mesmo aos corações humilhados como o deste rei vadio, reentronizado por Romulo Fróes, trinta anos após a morte do artista, em disco brilhante pelo desconforto que provoca ao respeitar - sempre desrespeitando - o luto do nobre Nelson Cavaquinho.

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