Resenha de álbum
Título:Se a canção mudasse tudo
Artista: Manuela Rodrigues
Gravadora: Edição independente da artista
Cotação: * * * *
Título:Se a canção mudasse tudo
Artista: Manuela Rodrigues
Gravadora: Edição independente da artista
Cotação: * * * *
♪É difícil se fazer ouvir na Bahia fora do circuito industrializado da axé music e de ritmos ainda mais populistas como o pagode e o arrocha. Manuela Rodrigues é voz dissonante nessa indústria. Boa cantora e compositora baiana que lançou o primeiro álbum, Rotas (Independente, 2003), já há 13 anos, Manuela ainda é uma voz ouvida por poucos. Álbum independente produzido com recursos financeiros obtidos no projeto Natura musical, Se a canção mudasse tudo vai manter inalterado o status e a popularidade da artista no diluído mercado fonográfico brasileiro. Mas confirma o talento de Manuela, contradizendo o título do excelente álbum que o antecedeu há cinco anos, Uma outra qualquer por aí (Garimpo Música, 2011). Além de roçar a excelência desse antecessor com som quente, formatado por diversos produtores, Se a canção mudasse tudo prova de vez que Manuela Rodrigues não é uma cantora e compositora qualquer. "Outros meios, outros amigos / Cruzar famílias e filhos / Frequentar outros lugares / Evitar as portas dos bares / Hora de quietar o facho", sentencia a artista nos versos iniciais de Lista (Manuela Rodrigues, 2016), rock formatado pelo produtor Tadeu Mascarenhas que volta a ser ouvido no fim do disco, enquadrado na moldura eletrônica do produtor João Milet Meirelles, em faixa que mais parece remix. Nos versos de Lista, Manuela alinha decisões e resoluções que parecem motivadas pela maternidade. O álbum, aliás, foi gestado durante a primeira gravidez da artista. O que faz sobressair naturalmente o sentimento maternal de Ventre (Manuela Rodrigues, 2016), bela canção parida quando o primeiro filho da artista ainda estava no terceiro mês de gestação. A letra de Ventre embute o verso-título do álbum Se a canção mudasse tudo e o sonho de mundo melhor para o filho que estava por vir. O arranjo da faixa - formatada por Tadeu Mascarenhas com João Milet Meirelles - evoca ambiência bem aconchegante que pode significar a tentativa (feliz) de remeter a sons da vida intra-uterina. Outro trunfo da safra autoral, Marcha do renascimento (Manuela Rodrigues, 2016) evolui também no embalo do sentimento que rege a vida de mãe amorosa decidida a proteger o filho dos males do mundo. "Bloco sem corda e sem cordão / Umbigo cortado, o grito, o choro / O coração", parem os versos da marcha. Manuela Rodrigues faz o próprio Carnaval sem ir atrás do trio elétrico. Mas a percussão de Gustado Di Dalva - condutora de Bagagem (Manuela Rodrigues, 2016), faixa produzida por Di Dalva - evoca o som do berimbau e dá o toque de que a artista também traz na mala uma (salutar) baianidade nagô distanciada dos clichês do universo afro-brasileiro. Xote pop que anunciou a chegada do álbum em single digital lançado há três anos, a deliciosa Ôxe, oxê, oxê! (Manuela Rodrigues e Álvaro Lemos, 2013) brinca com graça ao apontar com fina ironia uns estereótipos associados aos baianos. Convidada de Amor de carne e osso (Manuela Rodrigues, 2016), a cantora carioca Silvia Machete entra na brincadeira ao dividir com Manuela a interpretação desta música apimentada com toque nortista no arranjo de atmosfera meio circense. Música formatada por Luciano Salvador Bahia com arranjo que sublinha a ironia cortante da letra, Rede social (Manuela Rodrigues, 2016) tira toda a maquiagem virtual que mascara rostos e realidades em selfies e posts. Já Desejo batuque (Manuela Rodrigues e Lara Belov, 2016) e Risos (2016) - música inédita de autoria de Ronei Jorge, mentor da banda baiana Ronei Jorge & Os Ladrões de Bicicleta - sinalizam que, por vezes, a sonoridade forte de Se a canção mudasse tudoé superior às músicas em si. Boa parte da graça de Risos, afinal, reside nas múltiplas vozes gravadas pela própria Manuela Rodrigues e na trama das cordas orquestradas por Jorge Solovera. Contudo, o samba Nenhum homem é uma ilha (2016) - composto e cantado pela artista com o carioca João Cavalcanti - equilibra música e sonoridade no mesmo alto patamar. Em outra conexão com a cidade do Rio de Janeiro (RJ), o disco ostenta o toque do violino do já acariocado francês Nicolas Krassik em Qualquer porto, canção de mares bravios, magistralmente produzida por Tadeu Mascarenhas. Bisando a conexão com os paulistanos Romulo Fróes e Clima, compositores da música-título do álbum anterior Uma outra qualquer por aí, Manuela dá voz a uma outra composição inédita da dupla, Vai que eu desembeste (2016), gravada com mix de vozes e programações eletrônicas. A atitude expressa nos versos da letra lembra a espevitada expansividade de Barraqueira (Manuela Rodrigues, 2007), o desaforado samba lançado por Márcia Castro no primeiro e melhor álbum desta cantora também baiana. Ainda fora do trilho autoral que conduz Se a canção mudasse tudo, Manuela supera o conterrâneo Gilberto Gil ao dar voz, com mais pegada, a Extra II (O rock do segurança), música lançada pelo cantor e compositor baiano em álbum de 1984. Tadeu Mascarenhas produziu a faixa com brilhantismo, reiterando a sintonia com o som moderno de Manuela Rodrigues, cantora e compositora que, como diria a Marrom Alcione, não é uma qualquer por aí na cena indie brasileira.