Resenha de CD e DVD
Título: Carta de amor
Artista: Maria Bethânia
Gravadora: Biscoito Fino
Cotação: * * * *
Título: Carta de amor
Artista: Maria Bethânia
Gravadora: Biscoito Fino
Cotação: * * * *
Por atrair atenções e devoções, a magnética força dramática de Maria Bethânia em cena por vezes atenua eventuais redundâncias de seus espetáculos. Oriundo de álbum (Oásis de Bethânia, 2012) menos relevante no conjunto da obra fonográfica da intérprete baiana, o show Carta de amor- em cartaz de novembro de 2012 a novembro de 2013 - se revelou também menos marcante na nobre trajetória da cantora nos palcos brasileiros. Era para ser um show de ruptura, já que o maestro mineiro Wagner Tiso assumiu em Carta de amor a função de diretor musical (confiada por Bethânia a Jaime Alem desde 1988), só que a presença de Tiso acabou ofuscada pelo magnetismo da intérprete. Sob a direção de Bia Lessa, Bethânia reescreveu em Carta de amor trechos de sua história de sucesso, reciclando músicas, gestos e ênfases com seu habitual domínio cênico. Por tudo isso, o DVD Carta de amor - posto nas lojas pela gravadora Biscoito Fino neste mês de dezembro de 2013, simultaneamente com os dois CDs avulsos intitulados Carta de amor ato 1 e Carta de amor ato 2 - surpreende positivamente. Filmado em 13 e 14 de abril de 2013, na mesma casa Vivo Rio onde houve sua estreia nacional no Rio de Janeiro (RJ) em 18 de novembro de 2012, o show Carta de amor cresce no DVD. O apuro da filmagem - supervisionada pela diretora Bia Lessa - valoriza e de certa forma até aprimora o espetáculo. Tal apuro é nitidamente perceptível já no início do DVD, quando a tela de abertura reproduz imagem do palco. Quando essa imagem ganha movimento, para dar início à exibição do show, vê-se os pés da cantora caminhando pelo palco para chegar à cena em que reina mais soberana quando descarta as tais redundâncias e apresenta novidades em sua voz, como a belíssima inédita sertaneja do compositor paraibano Chico César, Estado de poesia, e como a dramática canção do compositor português Pedro Abrunhosa, Quem me leva os meus fantasmas, grande momento no fecho do primeiro ato. Outro mérito do DVD Carta de amoré eternizar interpretações precisas de Bethânia. Quem viu o show ao vivo e pelo YouTube sabe que, ao longo da turnê, Bethânia quase nunca acertou o ritmo do samba-reggae Não enche (Caetano Veloso, 1997). Pois o número ganha no DVD o peso e o tom que sempre deveria ter tido no show. O domínio dos closes na filmagem se revela acertado, pois Bethânia é o único foco de interesse na cena de seus espetáculos para seu devotado público. A delicada captação de Fogueira (Ângela RoRo, 1983) entende isso e reitera o êxito da filmagem. Por isso mesmo, destoa a exposição de cabeças do público no preguiçoso bis dado com a interpretação a capella de Explode coração - número herdado de show de 1990 e já revivido pela cantora em seu espetáculo anterior, Amor, festa, devoção (2009) - e com o já exaurido samba O que é o que é (Gonzaguinha, 1982). Outro ponto discutível no DVD é a perpetuação do erro na entrada do segundo ato. Desconfortável com seu equipamento de retorno, Bethânia interrompe Festa (Gonzaguinha, 1968) em erro eternizado no DVD (e no CD Ato 2) por vontade da artista, já que a captação do show foi feita em dois dias. Tal como o disco Oásis de Bethânia, o show Carta de amor - cujo diretor de fotografia é o cineasta Lauro Escorel - nasceu da raiva da cantora por ter sido pega em 2011 para bode expiatório em polêmica discussão nacional sobre captação de verbas públicas para a criação de blog de poesia. Disco e show são as respostas contundentes de Bethânia ao injusto linchamento moral que sofreu na época. Músicas como A dona do raio e do vento (Paulo César Pinheiro e Pedro Caminha Amorim) cospem raios e trovadas em roteiro de conceito menos sólido no confronto com outros espetáculos da artista. Ainda assim, a costura do roteiro - o último criado por Bethânia com seu fiel colaborador Fauzi Arap (1938 - 2013) - se revela fina em muitas canções e momentos, como aquele que linkaCasablanca (Roque Ferreira, 2012) no roteiro com Na primeira manhã (Alceu Valença, 1984) por afinidade temática da perda. Em contrapartida, a música ouvida no intervalo entre os dois atos - quando Wagner Tiso e banda tocam deslocado medleyinstrumental que une Cais (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, 1972) e Maria Maria (Milton Nascimento e Fernando Brant, 1976) - tem mais a ver com a história e o universo musical do maestro mineiro do que com a trajetória de Bethânia. Já o arranjo de Fera ferida (Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1982) resultou equivocado ao passo que o link de Mensagem (Aldo Cabral e Cícero Nunes, 1945) - música que ganha seu primeiro registro audiovisual na voz de Bethânia no DVD Carta de amor- com o texto-título do poeta português Fernando Pessoa (1888 - 1935) soa déjà vu. Mas são detalhes que se apequenam diante da grandeza da cantora em cena. Embora soe por vezes redundante (afinal, o registro de Carta de amor em DVD não resolve todos os problemas do show), Maria Bethânia ainda vai ao infinito, amarrando todos nós com um só sentimento na plateia e na voz ainda poderosa.