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Channel: Notas Musicais
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Arco de 'Meus quintais'é - ainda - marco que coroa Bethânia em sua tribo

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Resenha de CD
Título: Meus quintais
Artista: Maria Bethânia
Gravadora: Biscoito Fino
Cotação: * * * * *

O arco poético e musical do 51º álbum de Maria Bethânia, Meus quintais, é grande o suficiente para envolver todo um Brasil já distante - povoado por índios, caboclos e Iaras - e ainda ser marco pessoal na discografia da cantora. Parafraseando os versos poéticos de Arco da velha índia (Chico César, 2014), tal arco coroa a intérprete que tece para sua tribo - a partir de um olhar íntimo e pessoal para dentro de suas memórias mais longevas - teia de sentimentos universais que expandem esse olhar e se configuram em pungente retrato de um Brasil rural, folclórico, que ainda pulsa forte nas entranhas menos urbanizadas do país. Meus quintais devolve a Bethânia a magnitude momentaneamente perdida com disco (Oásis de Bethânia, Biscoito Fino, 2012) e show (Carta de amor, 2012) raivosos que resultaram menores face à grandeza de sua obra. Meus quintaisé o álbum mais coeso da intérprete desde os gêmeos aquáticos Mar de Sophia (Biscoito Fino, 2006) e Pirata(Quitanda / Biscoito Fino, 2006). Seu universo interiorano remete a Brasileirinho (Quitanda / Biscoito Fino, 2003) - álbum que marcou a imersão de Bethânia nesse Brasil rural que já aparecia de forma eventual na discografia da cantora em discos interiorizados como o belo e pouco ouvido Olho d'água (Polygram, 1992) - sem ser clone desse cultuado CD que dividiu águas e abriu florestas na obra fonográfica da intérprete. Como seu antecessor Oásis de Bethânia, já feito sem o maestro talentoso Jaime Alem, Meus quintais alinha vários arranjadores na virtuosa ficha técnica sem o comprometimento de sua unidade. Ao contrário. Com criação geral atribuída à própria Maria Bethânia e ao baixista Jorge Helder, Meus quintais é pautado por harmonia tamanha que lhe confere status de disco conceitual. Até a urbana Dindi (Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, 1959) se ajusta com perfeição a esse conceito - o que torna dispensável sua caracterização como faixa extra ao fim do disco - tanto do ponto de vista poético como musical. No toque do piano preciso do orquestrador Wagner Tiso, o vento que fala nas folhas parece soprar - como o flugel horn de Jessé Sadoc, fundamental na construção da atmosfera envolvente da faixa - histórias do mesmo Brasil rural cantado de forma poética por Paulo César Pinheiro nos versos de Alguma voz (2014), parceria de Pinheiro com Dori Caymmi que abre o disco também no toque de um piano - no caso, o de André Mehmari. A costura desse arco de memórias é delicada. É nesse tempo de delicadeza que Bethânia habita Casa de caboclo (Roque Ferreira e Paulo Dáfilin, 2014), abrigando na faixa um sentimento brasileiro, caipira, realçado sem clichês sertanejos pelo toque do violão de Maurício Carrilho, arranjador da faixa na qual, aos dois minutos, entra o acordeom de Toninho Ferragutti, sublinhando a ruralidade desse Brasil distante que resiste no canto cada vez mais íntimo de Bethânia. A voz desse Brasil distante também ecoa em Xavante (2014), instante iluminado do compositor paraibano Chico César, primeiro nome contatado por Bethânia quando a artista baiana começou a alinhavar o conceito de Meus quintais. A guitarra portuguesa de João Gaspar evoca em Xavante um Brasil em que índios tiveram que seguir avante - não contentes, mas cantantes - no confronto cotidiano com os colonizadores lusitanos. São do violonista João Gaspar, aliás, os acordes mais contemporâneos ouvidos em Meus quintais. O toque de sua guitarra slide em Uma Iara (2014) - mergulho poético, tão curto quanto denso, de Adriana Calcanhotto nesse Brasil folclórico - é o sopro alienígena de contemporaneidade em Meus quintais. Ponto mais alto de um disco sem baixos, Uma Iara emerge sublime na junção da canção de Calcanhotto com o texto Uma perigosa Yara, da escritora ucraniana (de criação brasileira) Clarice Lispector (1929 - 1977). Enraizada no mesmo universo folclórico das Iaras, Folia de reis - uma das cinco músicas do compositor baiano Roque Ferreira - abre o arco e o expande até o Recôncavo Baiano, de onde parecem vir os dois sambas de Roque, Imbelezô eu (2014) e Vento de lá (2007), linkados na mesma faixa de Meus quintais. Compositor mais recorrente na fase atual da discografia de Bethânia, Roque Ferreira - a propósito - faz Meus quintais florescer eventualmente sob o signo da repetição sem que a sensação de dèjá vu - presente em temas como Candeeiro velho (Roque Ferreira e Paulo César Pinheiro, 2014), faixa exteriorizada de vivacidade rítmica - empane a boniteza do resultado final do disco. É no Recôncavo Baiano que também estão enraizadas as lembranças das memórias de Bethânia com sua mãe, Claudionor Viana Teles Veloso (1907 - 2012), a Dona Canô, evocada na regravação de Mãe Maria (Custódio Mesquita e David Nasser, 1943), abordada por Bethânia em tempo sereno de maturidade que contrasta com a pulsão mais dramática de seu primeiro registro do tema, feito para o álbum Pássaro proibido (Philips, 1976). Também reminiscência da convivência com Canô nos dias de infância mais risonhos, a súplica sertaneja de Lua bonita (Zé do Norte e Zé Martins, 1953) resplandece no toque das cordas do grupo carioca Tira Poeira. Dentro do amplo arco estético de Meus quintais, cabem ainda a Moda da onça - tema tradicional recolhido por Paulo Vanzolini (1924 - 2013) e gravado pela cantora paulista Inezita Barroso em 1960 - e o samba-exaltação indígena Povos do Brasil, do emergente compositor carioca Leandro Fregonesi. E é assim, cantando os povos do Brasil que espreita pelas frestas largas de seu quintal, que a intérprete recupera sua magnitude com um grande disco feito para sua tribo. Mesmo sob o signo de certa repetição, Meus quintaisé, ainda, um marco que coroa Maria Bethânia nessa sua tribo. Avante, rainha!!

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