Resenha de show
Título: Estratosférica
Artista: Gal Costa (em foto de Mauro Ferreira)
Local:Sala municipal do Teatro Castro Alves (Salvador, BA)
Data: 27 de setembro de 2015
Cotação: * * * * 1/2
Título: Estratosférica
Artista: Gal Costa (em foto de Mauro Ferreira)
Local:Sala municipal do Teatro Castro Alves (Salvador, BA)
Data: 27 de setembro de 2015
Cotação: * * * * 1/2
♪Talvez não seja por mero acaso que as duas primeiras músicas do roteiro do show Estratosférica - estreado por uma já setentona Gal Costa na Bahia na noite de ontem, 27 de setembro de 2015 - versem sobre espelho, ainda que sob prismas distintos. Aos 70 anos, completados na véspera da estreia nacional do show baseado no álbum de inéditas Estratosférica (Sony Music, 2015), a cantora baiana se reflete com sua voz ainda cristalina no espelho plural e transcendental do espetáculo dirigido por Marcus Preto. E, ao se entregar às imagens de seu espelho, como canta no rock stonianoSem medo nem esperança (Arthur Nogueira e Antonio Cícero, 2015), primeira das 25 músicas do impecável roteiro, Gal mostra em cena que já se vê de fora de si ao longo desse repertório que reflete todos os tons do canto extenso de Maria da Graça Costa Penna Burgos. Ao mover seu rosto do espelho, para citar um verso de Mal secreto (Jards Macalé e Waly Salomão, 1971), Gal pode ser vista em cena tanto como a tímida Gracinha devotada a João Gilberto - quando arranha seu violão, a sós com o público, para reviver a primeira lembrança musical de seu compositor-guia Caetano Veloso, Sim, foi você (1965), marco inicial de sua discografia cinquentenária - quanto como a Gal fatal que eleva os tons para acertar a conta com seu passado transgressor no toque bluesy de Como dois e dois (Caetano Veloso, 1971), reminiscência de um lendário show feito a todo a vapor entre 1971 e 1972. Mais do que fatal, Gal sempre foi plural. Por isso, consegue passear com tanta naturalidade por um inédito samba cheio de bossa feito para ela por Marcelo Camelo - Pelo fio, número de voz & violão (o do guitarrista Guilherme Monteiro) que também faz ressuscitar a Gracinha, a menina que deu seus primeiros passos musicais na cidade de São Salvador onde o show Estratosférica debutou feliz em cena - e por libertador blues-rock como Cartão postal (Rita Lee e Paulo Coelho, 1975), boa surpresa de roteiro que revisita o passado de Gal com foco no presente sem concessões aos hits esperados pelo público mais conservador. É fato, aliás, que várias músicas do repertório de Estratosférica foram recebidas pela plateia do Teatro Castro Alves com frieza até justificável pelo fato de o disco que batiza o show ainda não ter sido assimilado por boa parte desse público. Mas Quando você olha pra ela - a canção de Mallu Magalhães escolhida como primeiro single do álbum Estratosférica - surte efeito e soa com mais jeito de Jorge Ben Jor do que Cabelo (1990), a parceria do Zé Pretinho com Arnaldo Antunes que Gal lançou há 25 anos no álbum Plural(BMG-Ariola, 1990). Cabelo ainda pode crescer no show, ganhando uma interpretação mais descabelada que não se deixe abater pelo peso do arranjo roqueiro no qual sobressaem o baixo de Fábio Sá e a guitarra de Guilherme Monteiro. A propósito, Estratosféricaé - no som e na atitude - um show de rock, ainda que tenha sambossa (como Vou buscar você pra mim, a inédita de Guilherme Arantes incluída somente na edição digital do álbum Estratosférica, mas cantada por Gal no bis do show), canção de amor e até um iê iê iê nada romântico de Tom Zé, Namorinho de portão (1968), gravado por Gal em disco de 1969 e revivido no show no momento em que o público vê pela primeira vez o painel abstrato criado por Zé Carratu para o cenário do espetáculo. A vibração do rock é garantida pela firme direção musical de Pupillo (por questões de agenda substituído na bateria por Thomas Harres na estreia nacional do show). O quarteto da estreia soou fantástico, executando arranjos que tiraram qualquer sinal de mofo do repertório antigo, irmanando músicas novas e velhas. Tecladista e guitarrista da banda paulistana Bixiga 70, Maurício Fleury integra o quarteto e tira de seus teclados os efeitos psicodélicos que pavimentam o caminho percorrido pela personagem apaixonada de Jabitacá (Lirinha, Junio Barreto e Bactéria, 2015). E por falar em paixão, a canção Não identificado (Caetano Veloso, 1969) chega ao céu com o arranjo que projeta ruídos e efeitos em clima espacial. Na estreia da turnê, Não identificado foi o primeiro número musical recebido com entusiasmo pela plateia. Já Ecstasy (João Donato e Thalma de Freitas, 2015) surte efeito mais fraco em cena, talvez pela ausência do Fender Rhodes tocado por João Donato no disco. Outra música que ainda pode ganhar mais peso no show é Dez anjos (Milton Nascimento e Criolo, 2015), tema de tom social que não tem toda sua tensão evidenciada pelo arranjo e pela interpretação de Gal (talvez pela questão social destoar do repertório do espetáculo). Já Casca (Jonas Sá e Alberto Continentino, 2015) se manteve com a mesma consistência do disco em arranjo prog de tom eletrônico. Os climas do show, aliás, são bem variados - mérito do diretor Marcus Preto, que soube criar roteiro bem amarrado. Até mesmo Dez anjos tem seu link feito com a aridez de Acauã (Zé Dantas, 1952), Sem seu fantástico quarteto, Gal fica sozinha no palco e, com bases pré-gravadas, se embrenha no sertão seco de Acauã, ruminando seu canto com a propriedade de quem ouviu muito Luiz Gonzaga (1912 - 1989) antes de ser abduzida pela bossa aliciadora de João Gilberto. Em outro momento íntimo, no qual a cantora afina sua voz com o toque do violão de Guilherme Monteiro, Gal expõe a solidão triste e gelada de Três da madrugada (Carlos Pinto e Torcuato Neto, 1973). Mas alegrias e tristezas se irmanam em cena. Na parte mais expansiva e calorosa do show, iniciada com Como dois e dois, Gal e banda dão brilho contemporâneo a Pérola negra (Luiz Melodia, 1971) antes de caírem no suingue nordestino para desnudar a maliciosa Por baixo (Tom Zé, 2015), delícia luxuriosa do baiano Tom Zé. Na sequência, Arara (Lulu Santos, 1987) aponta seu bico quando Gal reproduz o canto onomatopaico da palavra-título da música, perseguindo os agudos da gravação original, feita em controvertido álbum de tom tecnopop, Lua de mel como o diabo gosta (BMG-Ariola, 1987). Profana ou sacra, Gal gosta da sua Bahia e, por isso, revive sua festa do interior ao cantar Estratosférica (Céu, Pupillo e Junior Barreto, 2015), música-título do disco e do show que alude nos versos ao cortejo do bloco afro-baiano Filhos de Gandhy pelas ruas da velha São Salvador, capital de uma Bahia mítica que resiste no imaginário nacional. No fecho do show, antes do bis, a cantora ainda tenta esticar a festa no refrão de Os alquimistas estão chegando os alquimistas (Jorge Ben Jor, 1974), reflexo de uma Gal que deu muita voz a Jorge Ben. No bis, a cantora atualiza Meu nome é Gal com citações dos músicos da banda, dos compositores que lhe forneceram o repertório do álbum Estratosférica e dos 70 anos completados na véspera da estreia nacional do show que vai percorrer o Brasil até 2016. A simulação de sons de guitarra na voz - ao fim do número - é outro reflexo de uma Gal que trilhava o caminho da inquietude, retomada na maturidade a partir do revigorante disco e show Recanto (2011 / 2012). No segundo bis, a fúria roqueira de Vingança (Lupicínio Rodrigues, 1951) - herança do demolidor show em que Gal deu lufada de ar fresco no cancioneiro amargurado do compositor Lupicínio Rodrigues (1914 - 1974) - e a beleza plácida da canção Você me deu (Caetano Veloso e Zeca Veloso, 2015) reiteram que o espelho de Gal Costa é multifocal. Grande show de uma senhora cantora de 70 anos, Estratosféricaé reflexo feliz desse espelho ainda cristalino.